INTRODUÇÃO

Maria Amalia Gusmão Martins

Resumo


Este segundo número do vigésimo volume dos Cadernos de Ciência & Tecnologia traz refletida em seu conteúdo uma pequena amostra do vasto leque de campos e áreas temáticas emergentes nas últimas 3 décadas, no cenário das ciências biológicas, ambientais e sociais. Os temas da questão ambiental aqui discutidos - seqüestro de carbono, Princípio da Precaução e quadro regulatório de transgênicos - estão hoje, mais do que nunca, presentes nas agendas governamentais do mundo inteiro; a pequena produção e a agricultura familiar, por seu turno, são importantes itens na agenda do atual governo brasileiro, com vívidos reflexos sobre a pauta de prioridades e sobre o direcionamento estratégico dos programas, projetos e ações de órgãos e organizações governamentais, empresas e organizações não-governamentais hoje envolvidas no seu enfrentamento.

À medida que diferentes e novas perspectivas disciplinares são incorporadas à busca de respostas para um problema complexo, maiores serão as chances de se alcançarem soluções viáveis e, sobretudo, sustentáveis, para o mesmo. Uma característica recorrente das equipes de pesquisa dos campos emergentes (os das ciências ambientais, por exemplo) tem sido a sua constituição multidisciplinar. Mesmo que isso não seja suficiente para garantir a transdisciplinaridade desejável, não deixa de ser um atributo determinante para que ela aconteça. Na análise da produção técnico-científica desses grupos, essa característica é refletida no número de autores envolvidos, na diversidade de seus campos de formação e pós-graduação e na natureza da abordagem, em geral bastante abrangente, sistêmica e integradora.

Embora seja essa uma tendência relativamente recente, de pouco mais de 3 décadas, alguns cientistas, ao seu modo, já perseguiam abordagens mais amplas há muito mais tempo, como é o caso de Josué de Castro, o grande estudioso da fome. Pernambucano, nascido em 1908, médico, professor catedrático de Geografia Humana na Universidade do Brasil durante 24 anos, presidente da Organização para Alimentação e Agricultura das Nações Unidas - FAO - entre 1952 e 1956, Prêmio Internacional da Paz em 1954 e Embaixador do Brasil na ONU, de 1962 a 1964, cargo do qual se demitiu em virtude do golpe militar de 1964, que lhe cassaria os direitos políticos no mesmo ano, fazendo-o exilar-se em Paris, onde atuou como professor estrangeiro associado à Universidade de Paris, de 1968 a 1973. Pelo tipo de formação, produtividade, campos de interesse e, sobretudo, pela extrema sensibilidade social, Josué de Castro trazia em si próprio as múltiplas perspectivas e possibilidades de abordagem hoje desejáveis numa equipe de pesquisa. Desse modo, como se se constituísse numa ampla equipe de pesquisa com origem disciplinar variada, pôde imprimir o selo da transdiciplinaridade ao seu método.

Neste próximo setembro, completar-se-ão 3 décadas desde a sua morte. Em face da atualidade do seu objeto de pesquisa, não poderíamos deixar de lhe render aqui uma homenagem ou, mais que isso, não poderíamos perder a oportunidade de sugerir às novas gerações de cientistas e pesquisadores a leitura de alguns títulos de sua obra, como Geografia da Fome e Geopolítica da Fome, publicados em 1946 e 1951, respectivamente. No contexto atual, nesse momento em que a preocupação do governo diante do problema da fome ensejou inclusive a criação de um programa nacional para o seu enfrentamento, seu trabalho poderá reassumir o papel instigante e inspirador observado nas décadas de 50 e 60 pelos intelectuais de então, não apenas no Brasil, mas em outros países, sobretudo na Europa, onde viveu grande parte de sua vida e onde faleceu, em Paris, exilado, em 24 de setembro de 1973. Ao final do presente número, na seção Resenhas, reeditamos o conhecido prefácio de Max Sorre para a edição francesa de Geopolítica da Fome, publicada em 1952.

Fica registrada, desse modo, a nossa homenagem ao grande médico e geógrafo.

Pode-se dizer que tanto seqüestro de carbono quanto Princípio da Precaução e quadro regulatório de transgênicos são expressões que sequer existiam há 30 anos. Tampouco eram conhecidas no meio acadêmico, quando a maioria dos pesquisadores seniores ativos ainda freqüentava cursos de graduação, em universidades brasileiras, ou de pós-graduação, em universidades americanas ou européias. Isso porque, historicamente, não existe possibilidade de acesso a informações científicas ou tecnológicas recém-geradas em áreas de fronteira do conhecimento, sobretudo porque são mantidas sob sigilo por um certo tempo pela equipe de pesquisa e por alguns pesquisadores associados, até sua apropriação simbólica ou legal, na forma de autoria em publicações ou obtenção de títulos de patente ou quaisquer outras formas de proteção da propriedade intelectual. Embora tais expressões já estejam incorporadas ao dia-a-dia de um grande número de pesquisadores da área agropecuária e ambiental, inclusive por constar em grande parte dos textos oficiais governamentais que lhes caem às mãos, são termos ainda desconhecidos ou obscuros para o público geral e para pesquisadores de outras áreas, mesmo aquelas que tangenciam a questão ambiental.

Apesar dos primeiros estudos sobre seqüestro de carbono, com essa terminologia, serem anteriores, foi somente a partir do início da década de 90 que o tema ganhou visibilidade além do círculo técnico-científico, sobretudo após constar da pauta de discussões da Conferência das Nações Unidas sobre Meio ambiente e Desenvolvimento (a Rio-92) e, depois, por se constituir num dos principais pomos de discórdia do Protocolo de Kyoto, de 1997. A esse propósito, Renato Roscoe - em Rediscutindo o papel dos ecossistemas terrestres no seqüestro de carbono - faz uma análise sobre o papel dos ecossistemas terrestres no balanço de CO2 (principal gás de efeito estufa) na atmosfera, enfatizando as potencialidades e limitações de atividades mitigadoras relacionadas às mudanças no uso da terra e concluindo que, em sendo mantidos os atuais padrões de consumo de combustíveis fósseis, a fixação de carbono nos ecossistemas terrestres será ineficiente e inócua para mitigar os problemas causados pelo acúmulo de CO2 na atmosfera, como previsto no âmbito do Protocolo de Kyoto.

O Princípio da Precaução, por sua vez, foi idealizado inicialmente pelo Direito germânico, no início da década de 70, para fundamentar a política ambiental alemã, juntamente com o princípio "quem polui paga" (polluter pays principle). Na década seguinte, o princípio adquiriu uma coercitividade legal mais abrangente, ou seja, passou a vigorar em âmbito mundial, após ter sido incluído em alguns tratados internacionais. Mas a formulação mais representativa do Princípio da Precaução no direito internacional aconteceu mesmo quase 20 anos depois de sua gênese, na Declaração do Rio de 1992, fruto da Rio-92. Neste número, em O Princípio da Precaução: considerações epistemológicas sobre o princípio e sua relação com o processo de análise de risco, Frederico Gonçalves Cezar e Paulo César Coelho Abrantes analisam esse princípio do Direito Ambiental que vem sendo largamente invocado em debates judiciais e administrativos sobre a liberação comercial de avanços tecnológicos, especialmente na área de biotecnologia.

Ainda mais nova, como área temática, é a regulamentação relativa aos transgênicos e aos efeitos ambientais de plantas transgênicas. As primeiras preocupações nesse sentido surgiram na década de 80, com os primeiros testes de campo com plantas geneticamente modificadas para efeito de controle de pragas. A partir de então, e sobretudo nos países onde as culturas transgênicas estão liberadas para plantio e comercialização, o quadro regulatório tem sido constante e profusamente abastecido pelos resultados da pesquisa agrícola e ambiental, uma vez que funcionam como subsídios na formulação de políticas públicas. Em Os transgênicos provocam novo quadro regulatório e novas formas de coordenação do sistema agroalimentar, Lavínia Davis Rangel Pessanha e John Wilkinson analisam os distintos termos dos debates em torno dos transgênicos nos principais blocos comerciais do mundo, mapeiam iniciativas de retirada de produtos e ingredientes transgênicos por parte da indústria alimentar e da grande distribuição e revisam os argumentos pró e contra da rotulagem e segregação, bem como suas implicações sobre a reorganização das cadeias agroalimentares. Os autores discutem ainda o movimento de sensibilização em torno de noções de segurança alimentar e os novos pressupostos de negociação internacional, fortemente baseados no Princípio da Precaução e, a partir das considerações desenvolvidas ao longo do trabalho, fazem uma apreciação das posições adotadas no contexto brasileiro.

Na resenha intitulada Efeitos ambientais de plantas transgênicas: alcance e suficiência da regulamentação, Jairo Silva apresenta os principais aspectos tratados na obra Environmental Effects of Transgenic Plants: the Scope and Adequacy of Regulation, publicada em 2002 pela National Academy Press.

Essas áreas temáticas, nascidas no âmbito das preocupações quanto à sustentabilidade ambiental, por lidarem com problemas complexos em ambientes complexos, costumam não apenas congregar esforços de pesquisadores e técnicos provenientes das mais diversas áreas de formação, mas, também, ser extremamente permeáveis à participação de atores sociais variados. A propósito, intensa participação de atores sociais é o que se busca em programas, projetos e ações realmente voltados para o desenvolvimento sustentável.

No artigo Mapeamento das relações interpessoais em três assentamentos de reforma agrária de Unaí-MG, Francisco Eduardo de Castro Rocha, José Luiz Fernandes Zoby, Marcelo Leite Gastal e José Humberto Valadares Xavier discutem a aplicabilidade da sociometria moreniana no mapeamento de redes de comunicação interpessoal como subsídio para ações de desenvolvimento comunitário. Os resultados apresentados referem-se a três projetos de assentamento de reforma agrária no Município de Unaí, MG, onde os agricultores foram ouvidos quanto à sua interação política, afetiva e técnica com os demais assentados. Tais resultados permitem identificar o grau de interação social dos membros de cada assentamento, a intensidade de comunicação entre eles e seus principais interlocutores, bem como os motivos que os induzem a se comunicar dentro do assentamento.

Em Tomada de decisões gerenciais no âmbito de duas fazendas familiares no Sul Goiano, Rui Fonseca Veloso, Fernando Borges Fernandes, Luiz Gustavo Barioni, Homero Chaib Filho, Ana Paula Silva e Adriana A. Coloca apresentam os resultados de um protótipo de sistema de informações gerenciais que vem sendo desenvolvido e aplicado em colaboração com dois produtores do sul goiano.

Na Seção Debates, o artigo Alevino - Um termo equivocado na piscicultura brasileira com conseqüências no setor produtivo, de Levy de Carvalho Gomes, Carlos Alberto Rego Monteiro Araujo-Lima e Rodrigo Roubach, analisa um sério problema relacionado à comercialização da "semente" de peixes nativos no Brasil e sugere uma mudança no nome normalmente utilizado para peixes pequenos em sistemas de criação, de "alevino" para "juvenil", uma vez que não há fundamento biológico para a utilização do termo alevino para espécies tropicais.

Finalmente, não poderíamos deixar de cumprimentar o nosso antecessor na editoria da revista, Cyro Mascarenhas Rodrigues, pela zelosa composição de conteúdos oferecida nos últimos 12 anos. Graças ao seu cuidado em contemplar de forma isenta a múltipla e variada matriz de campos disciplinares envolvidos na problemática do desenvolvimento, abriu espaços na revista tanto para trabalhos voltados ao desenvolvimento rural e comunitário quanto para estudos de enfoque mais econômico voltados para o agronegócio, tornando-a também um fórum de referência para a discussão de grandes temas de interesse atual, como proteção ambiental, agricultura orgânica, biotecnologia, transgênicos e outros.


Palavras-chave





DOI: http://dx.doi.org/10.35977/0104-1096.cct2003.v20.8741