INTRODUÇÃO

Maria Amalia Gusmão Martins Martins

Resumo


Ao longo do século 20, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, com a prevalência do paradigma químico-mecânico no setor agropecuário, a relevância da agricultura familiar – nos programas nacionais de desenvolvimento e demais políticas públicas, na indústria de insumos agrícolas, nos currículos acadêmicos, em círculos políticos, no imaginário das classes hegemônicas e mesmo no da classe trabalhadora rural – foi visivelmente relegada. Resumidamente, enquanto a agricultura industrial era elogiada como “moderna” e científica, a agricultura familiar passou a ser criticada como “tradicional” e empírica, ou seja, caracterizada por dois adjetivos com associação imediata à ideia de subdesenvolvimento. Somente no final do século 20 e início do século 21, em virtude de problemas ambientais e socioeconômicos evidenciados – principalmente depois da contraditória “crise alimentar” de 2008, ocorrida num contexto global de abundância de alimentos –, essa situação passou a ser questionada, e novas perspectivas surgiram para esse segmento de produção, que é extremamente variado e heterogêneo em sua composição e modalidades de produção.

A agricultura familiar, que é a forma predominante de agricultura tanto nos países desenvolvidos quanto nos países em desenvolvimento, constitui-se de mais de 500 milhões de propriedades agrícolas no mundo, nas quais as atividades rurais são geridas e conduzidas por uma família, e que contam, predominantemente, com mão de obra familiar. As propriedades em questão contemplam agricultores de pequena e média escalas, povos indígenas, comunidades tradicionais, pescadores, pequenos pecuaristas, coletores e muitos outros grupos, em várias regiões e biomas pelo mundo.

O Ano Internacional da Agricultura Familiar (AIAF 2014) foi instituído pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) como forma de dar visibilidade à agricultura familiar e aos pequenos agricultores. O objetivo do AIAF 2014 é “reposicionar a agricultura familiar no centro das políticas agrícolas, ambientais e sociais nas agendas nacionais, identificando lacunas e oportunidades para promover uma mudança rumo a um desenvolvimento mais equitativo e equilibrado (1)”.

Na América Latina e Caribe, as terras da agricultura familiar correspondem a cerca de 17 milhões de unidades produtivas, agrupando uma população de 60 milhões de pessoas. Estima-se que a agricultura familiar represente cerca de 75% do total de unidades produtivas e que, em alguns países, esse número possa chegar a mais de 90% (2). No Brasil, os dados do Censo Agropecuário de 2006 (3,4), do IBGE, mostraram que o Brasil possuía em 2006 um total de 5.175.489 estabelecimentos agropecuários, dos quais 4.367.902 poderiam ser classificados como de agricultores familiares, ou seja, 84% do total de unidades produtivas.

Mas é necessário enfatizar que, no momento presente, ao mencionar a agricultura familiar e seus protagonistas principais, não fará sentido aludir ao pequeno produtor ou pecuarista no mesmo tom em que o fariam os escritos das décadas de 1960 ou 1970. Tampouco faria sentido voltar ao “velho debate”, como advertem os autores de Diversidade e heterogeneidade da agricultura familiar no Brasil e algumas implicações para políticas públicas, ensaio publicado neste número. Mas o certo é que esse “velho debate” – ou seja, a argumentação fundamentada sobre o papel da pequena produção no desenvolvimento do capitalismo agrário ou sobre suas chances de persistir em face da modernização agrícola – ainda continua sendo trazido à tona sempre que a discussão se polariza.

Segundo os autores de Diversidade e heterogeneidade da agricultura familiar no Brasil e algumas implicações para políticas públicas, mencionados anteriormente, no Brasil,

A crise dos modelos de desenvolvimento, lastreados tanto nas ideologias do ajuste estrutural como nas propostas de mudança revolucionária, criou espaço para que experiências bem-sucedidas de inserção social e econômica baseadas na agricultura familiar mostrassem suas potencialidades. Em relação a isso, a agricultura familiar adquiriu centralidade política tanto para organizações internacionais como para os movimentos sociais, sindicatos e cooperativas, bem como para partidos políticos, programas e políticas públicas.

Consideradas essas condições favoráveis, nos últimos dez anos, inúmeros promotores de iniciativas acadêmicas e governamentais de pesquisa ou de transferência de tecnologia se utilizaram de técnicas aparentemente inovadoras – participativas, construtivistas, etc. – para afinal reproduzir um tipo de intervenção pautada em conceitos, premissas e modelos desenvolvidos ainda no século 20. Outros grupos de pesquisadores e técnicos, afortunadamente, buscaram novas saídas conceituais e metodológicas, e alguns desses se dedicaram a entender por que, afinal, após décadas de condicionantes desfavoráveis, essas formas de trabalho e produção – de base familiar – não só não desapareceram no meio rural, como também, em muitas situações, conseguiram se fortalecer e até mesmo desenvolver novos mecanismos de reprodução social e inserção econômica.

Abre esta edição comemorativa do Ano Internacional da Agricultura Familiar (AIAF 2014) o estudo de amplitude regional intitulado El surgimiento de políticas públicas para la agricultura familiar en América Latina: trayectorias, tendencias y perspectivas, assinado pelos pesquisadores Eric Sabourin, Mario Samper, Jean François Le Coq, Gilles Massardier e Octavio Sotomayor. Nesse trabalho, são analisados, caracterizados e comparados aspectos-chave das políticas públicas para a agricultura familiar em 11 países da América Latina. O artigo mostra o contexto, origem, fatores e vetores da disseminação regional das políticas públicas nacionais, além da diversidade destas e dos públicos aos quais se destinam, e, finalmente, mostra seus principais resultados, tendências e perspectivas de evolução, bem como os desafios na escala regional. São discutidos os avanços e limites dessas políticas focadas num determinado segmento e as perspectivas de respostas complementares com novas políticas transversais ou multissetoriais. Destaca-se a perspectiva de uma regionalização dessas políticas tanto por conta das agências internacionais como dos movimentos sociais e de uma multiplicação das instituições públicas setoriais dedicadas ao segmento da agricultura familiar.

Diversidade e heterogeneidade da agricultura familiar no Brasil e algumas implicações para políticas públicas é o ensaio de Sergio Schneider e Abel Cassol, que apresentam ao leitor a síntese dos resultados de um estudo mais amplo e aprofundado (5), realizado com base nos dados do Censo Agropecuário de 2006 para estudar o perfil e as características da agricultura familiar no Brasil por meio de uma classificação baseada no valor da produção agropecuária desses estabelecimentos e, secundariamente, das receitas obtidas com essas atividades. A tipologia dos estabelecimentos agropecuários familiares brasileiros foi elaborada utilizando-se indicadores da produção (mais especificamente, o valor da produção apurado) e de renda, com base em dados sobre as fontes de ingresso agrícolas e não agrícolas. Trata-se de uma contribuição para a compreensão da diversidade econômica da agricultura familiar no Brasil.

Considerando-se que as políticas públicas para o setor rural são questionadas em razão de múltiplos interesses e que o sentido último dessas políticas, assim como sua sustentabilidade temporal, depende em grande medida do contexto social e político, no período sucessivo à crise argentina de 2001–2002, o desafio era repensar e construir, para o País, um modelo de desenvolvimento que privilegiasse a inclusão social, recuperasse o trabalho como fator socializador e indicasse o território como contexto privilegiado.

No trabalho Agricultura familiar en Argentina: innovación institucional en el Inta, José Catalano, Luis Mosse e Andrea Maggio descrevem e analisam as novas formas de intervenção em pesquisa e extensão rural implementadas pelo Estado argentino na última década, tomando como referência os avanços do Instituto Nacional de Tecnologia Agropecuária (Inta) na construção de soluções tecnológicas no contexto da produção de base familiar.

No artigo Família e grupos domésticos na Amazônia paraense, um interessante diálogo entre bases conceituais e empíricas traz à tona aspectos relevantes da configuração de grupos domésticos da Amazônia paraense, analisados por Dalva Maria da Mota no período de 2010 a 2013, em quatro localidades no Nordeste Paraense, por meio da observação e de entrevistas (semiestruturadas e abertas) com 269 interlocutores. Os dados quantitativos foram analisados por meio do programa Sphinx e confrontados com os dados qualitativos, à luz das contribuições da sociologia rural e da família, bem como da antropologia social. As principais conclusões mostram: i) a existência de sete tipos de grupos domésticos; ii) a predominância do grupo doméstico do tipo nuclear em todas as localidades; iii) a forte relação entre grupos domésticos extensos e a disponibilidade de recursos naturais; iv) a influência das ações de políticas públicas na conformação dos grupos domésticos.

O acesso aos mercados é considerado um dos principais entraves ao desenvolvimento da agricultura familiar. No artigo Construção social de mercados pela agricultura familiar em Unaí, MG: potencialidades e limitações, Marcelo Leite Gastal, José Humberto Valadares Xavier, José Carlos Costa Gonçalves Rocha, Ana Paula Borges Mendonça e Warley Henrique da Silva analisam o acesso da agricultura familiar do Município de Unaí, MG a dois mercados: a feira da agricultura familiar e a venda de produtos para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). O objetivo é levantar as potencialidades e limitações desse processo como estratégia de apoio ao desenvolvimento da agricultura familiar. Para a agricultura familiar do Município de Unaí, a produção de leite apresentou-se como a principal estratégia de inserção desses agricultores.

Fernando Fleury Curado, Amaury da Silva dos Santos e Murilo de Jesus Oliveira sistematizaram a participação de produtores familiares em experiências relacionadas à agroecologia em sete municípios localizados no Território Semiárido Nordeste II, na Bahia. Nessas localidades, as iniciativas agroecológicas estão sendo estimuladas por meio de processos de identificação, sistematização, formação e articulação, na perspectiva do desenvolvimento de pesquisa e diálogo de conhecimentos, uma vez que diversas das experiências de convivência com o Semiárido utilizam-se de práticas que materializam saberes historicamente fundamentados em princípios agroecológicos. O estudo Sistematização de experiências agroecológicas no Território Semiárido Nordeste II, Bahia enfatiza a importância: i) do fortalecimento da articulação entre as instituições que atuam na assistência técnica, importantes na qualificação dos intercâmbios; ii) das interações em redes locais e regionais, que visam ao aprendizado mútuo por meio dos conhecimentos extraídos das experiências dos atores sociais; e iii) da orientação de políticas públicas relacionadas à agroecologia no território.

No artigo Conservação de recursos genéticos junto aos povos tradicionais do Norte de Minas, Patrícia Goulart Bustamante, Dejoel de Barros Lima e Rosa Miriam Vasconcelos apresentam algumas das estratégias para conservação e manejo dos recursos genéticos vegetais, desenvolvidas nas regiões Norte de Minas e Vale do Jequitinhonha, com destaque para o papel desempenhado pelos guardiões da agrobiodiversidade e para a constituição de uma rede física para conservação de sementes que vai das roças aos “quartos” e casas locais de sementes, das casas de sementes comunitárias à casa de sementes regional e desta para as casas de conservação de longo prazo. O artigo também reúne informações sobre o histórico da formação da Rede da Agrobiodiversidade do Semiárido Mineiro e sobre a construção, em 2012, do Plano de Ação Estratégico para Conservação da Agrobiodiversidade.

Para a seção Debate, José de Souza Silva surpreende com um instigante texto, intitulado O dia depois do desenvolvimento: giro filosófico para a construção de uma agricultura familiar agroecológica. Com base na premissa de que uma crise de sentido condiciona hoje o fim do mito do desenvolvimento, o autor propõe o “dia depois do desenvolvimento”, construído por meio de um giro filosófico no modo clássico de inovação da ciência moderna. Para isso, o autor reconstrói o passado, avalia o presente e explora o futuro da agricultura sob a influência do paradigma de inovação vigente. Apostando no potencial da agricultura familiar e da Agroecologia para construir comunidades rurais felizes, com modos de vida sustentáveis, ele sugere aos promotores da Agroecologia convidar a filosofia para apoiá-los no giro paradigmático desde uma agricultura familiar convencional até uma agricultura familiar agroecológica, compartilhando premissas para reorientar o esforço atual de consolidação dessa ciência.

No segundo texto para debate – O manejo florestal e a promoção da gestão dos recursos florestais em áreas de uso comunitário e familiar na Amazônia –, Milton Kanashiro atualiza e amplia um trabalho anteriormente apresentado na 64ª reunião da SBPC, em 2012. Nesse texto, o pesquisador mostra as possibilidades de olhar a floresta não apenas como oportunidade de acúmulo (discurso do capital), mas também como fonte de múltiplos produtos e serviços – ambientais e ecossistêmicos –, com potencial para geração de renda e bem-estar para as populações que a habitam (responsabilidade socioambiental). A floresta em pé representa o próprio movimento de resistência, no qual se busca fortalecer o que existe, e não apenas importar um modelo. Nessa perspectiva, é relevante a comercialização dos produtos que já existem na floresta, como forma de desenvolver a economia local, ao garantir a participação desses produtos nos mercados institucionais. Aqui entra a importância do aporte de tecnologia gerada no próprio contexto de sua aplicação: o manejo florestal de uso múltiplo – sistema de uso da terra –, que deverá garantir os preceitos do uso e conservação da biodiversidade. Na Amazônia, 123 municípios de diferentes estados já participam de diferentes cadeias produtivas de produtos da sociobiodiversidade, como piaçava, castanha-do-brasil, açaí, andiroba, copaíba e seringa, totalizando 19.595 famílias envolvidas diretamente, e abrangendo uma área com em torno de 12,5 milhões de hectares em florestas comunitárias, incluindo o produto madeireiro.

Fecha este número dos Cadernos de C&T a resenha de Zander Navarro sobre o livro O mundo rural no Brasil do século 21: a formação de um novo padrão agrário e agrícola, recentemente publicado pela Embrapa Informação Tecnológica, com 1.182 páginas. O próprio Zander Navarro é um dos editores técnicos da obra, juntamente com Antônio Márcio Buanain, Eliseu Roberto de Andrade Alves e José Maria da Silveira. O livro nasceu da necessidade de explicar a realidade agrária atual, ou seja, o “novo padrão agrário e agrícola”, atualmente em formação, empreendimento para o qual os modelos e ferramentas analíticas do passado, gerados nos meados do século 20, já não são suficientes ou são até mesmo inadequados.

Agradecemos a Assunta Helena Sicoli e a Dani Leonor Antunes Corrêa pela revisão vernacular dos artigos em espanhol.

Maria Amalia Gusmão Martins
Editora Técnica

 

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(1) FAO. Ano Internacional da Agricultura Familiar 2014: alimentar o mundo, cuidar do planeta: objetivos e linhas de ação. Disponível em: <http://www.fao.org/family-farming-2014/home/objetivos-elinhas-de-acao/pt/>. Acesso em: 28 ago. 2014.

(2) SABOURIN, E.; SAMPER, M.; LE COQ, J. F.; MASSARDIER, G.; SOTOMAYOR, O. El surgimiento de políticas públicas para la agricultura familiar en América Latina: trayectorias, tendencias y perspectivas. Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, DF, v. 31, n. 2, p. 189-226, maio/ago. 2014.

(3) Schneider e Cassol (2014) observam que esses resultados do Censo Agropecuário de 2006 foram publicados pelo IBGE em 30 de setembro de 2009.

(4) SCHNEIDER, S.; CASSOL, A. Diversidade e heterogeneidade da agricultura familiar no Brasil e algumas implicações para políticas públicas. Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, DF, v. 31, n. 2, p. 227-263, maio/ago. 2014.

(5) Estudo sobre “a agricultura familiar no Brasil”, integrante do Producto 3 (Reporte sobre la agricultura familiar) do projeto de “Análisis de pobreza y desigualdad rural en América Latina”, que o Rimisp elaborou para o Fondo Internacional de Desarrollo Agrícola (Fida) em 2013.


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DOI: http://dx.doi.org/10.35977/0104-1096.cct2014.v31.20858